Com a morte da Jovem Thays
Purcena, 20 anos, moradora em Uberlândia, porém, velada neste domingo e segunda-feira,
na Cidade de Caçu, no Sudoeste Goiano, resolvemos pesquisar o que na verdade é
a doença Lúpus e como a mesma se manifesta e como é diagnosticada.
De acordo com o Dr. Samuel
Kopersztych, médico Reumatologista e trabalha no Hospital das Clínicas da USP e
no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, Lúpus é uma doença autoimune rara, mais
freqüente nas mulheres do que nos homens, provocada por um desequilíbrio do
sistema imunológico, exatamente aquele que deveria defender o organismo das agressões
externas causadas por vírus, bactérias ou outros agentes patológicos.
O fato é que, no Lúpus, a defesa
imunológica se vira contra os tecidos do próprio organismo como pele,
articulações, fígado, coração, pulmão, rins e cérebro. Essas múltiplas formas
de manifestação clínica, às vezes, podem confundir e retardar o diagnóstico.
Lúpus exige tratamento cuidadoso
por médicos especialistas. Pessoas tratadas adequadamente têm condições de
levar vida normal. As que não se tratam, acabam tendo complicações sérias, às
vezes, incompatíveis com a vida.
A doença autoimune é
fundamentalmente caracterizada pela formação de auto-anticorpos que agem contra
os próprios tecidos do organismo. Por isso, o nome auto-agressão, às vezes, é
mais feliz. O paciente, geralmente do sexo feminino, fabrica substâncias
nocivas para seu organismo e o anticorpo, que é um mecanismo de defesa, passa a
ser um mecanismo de auto-agressão. Portanto, o que caracteriza a doença
autoimune é a formação de anticorpos contra seus próprios constituintes.
Eles podem agredir qualquer tipo
de território. De modo geral, a maior agressão ocorre no núcleo da célula,
graças ao aparecimento de vários auto-anticorpos contra substâncias presentes
em seu interior.
Entretanto, o mais importante não
é o anticorpo isoladamente. Do ponto de vista anatomopatológico, o que define a
auto-imunidade nos tecidos é a formação dos chamados complexos imunes.
COMPLEXOS IMUNES
A paciente que tenha a etnia
lúpica, ou seja, formação genética constitucional que a predispõe a desenvolver
lúpus, já possui auto-anticorpos em grande quantidade. Quando uma substância
vinda do exterior une-se a eles, forma-se o complexo antígeno-anticorpo. Isso
ativa um sistema complexo de proteínas chamado de complemento e leva à formação
dos complexos imunes, cuja concentração dita a gravidade e o prognóstico da
doença, porque eles se depositam no cérebro e nos rins principalmente.
O complexo imune depositado no
rim inflama esse órgão, produzindo a nefrite lúpica, importante para determinar
se a doente vai viver muitos anos ou ter a sobrevida encurtada.
A radiação solar, em especial os
raios ultravioleta prevalentes das dez às quinze horas, é a substância que mais
agride as pessoas que nasceram geneticamente predispostas. Em estudos
conduzidos no Hospital das Clínicas de São Paulo, foi possível detectar
inúmeros casos de pacientes que tinham o primeiro surto logo após ter ido à
praia e se exposto horas seguidas à radiação solar. Em geral, eram pacientes do
sexo feminino, já que a incidência de lúpus atinge nove mulheres para cada
homem. Nos Estados Unidos, há maior prevalência entre as mulheres negras; no
Brasil, verifica-se equivalência de casos em brancas e negras.
CORRELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS DE IMUNIDADE E ENDÓCRINO
É fundamental estabelecer uma
correlação entre o sistema de imunidade, de defesa do organismo, com o sistema
endócrino. O estrógeno (hormônio feminino) é autoformador de anticorpos; a
testosterona (hormônio masculino) é baixo produtor. O estrógeno é sinérgico à
produção de auto-anticorpos e a testosterona, supressora. Na mulher lúpica,
ocorre excesso de sinergismo, ou seja, excesso na produção de anticorpos, que
se traduz pela taxa elevada da proteína gamaglobulina nos exames de
laboratório.
Infelizmente o que acontece com
os animais de experimentação, cujos sintomas melhoram com a administração de
hormônios masculinos, não se repete nas mulheres. Mulheres lúpicas que tomam
hormônio masculino masculinizam-se nesse período, sem manifestar nenhum efeito
terapêutico protetor importante.
CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO
Havia grande confusão diagnóstica
em relação ao lúpus até a Sociedade Americana de Reumatologia enunciar onze
critérios de diagnóstico, em 1971. A mulher que preencher quatro deles
seguramente tem a doença.
Os dois primeiros referem-se à
mucosa bucal. Entre outras lesões orais importantes, aparecem úlceras na boca
que, na fase inicial, exigem diagnóstico diferencial com pênfigo, uma doença freqüente
em países tropicais. Pode ocorrer também mucosite, uma lesão inflamatória
causada por fatores como a estomatite aftosa de repetição, por exemplo.
O terceiro critério envolve a
chamada buttefly rash, ou asa de borboleta, que muitos admitem como o critério
mais importante, mas não é. Trata-se de uma lesão que surge nas regiões
laterais do nariz e prolonga-se horizontalmente pela região malar no formato da
asa de uma borboleta. De cor avermelhada, é um eritema que geralmente apresenta
um aspecto clínico descamativo, isto é, se a lesão for raspada, descama
profusamente.
O quarto critério é a
fotossensibilidade. Por isso, o médico deve sempre investigar se a paciente já
apresentou problemas quando se expôs à luz do sol e provavelmente ficará
sabendo que mínimas exposições provocaram queimaduras muito intensas na pele,
especialmente na pele do rosto, do dorso e de outras partes do corpo mais
expostas ao sol nas praias e piscinas.
O quinto critério é a dor
articular, ou seja, a dor nas juntas, geralmente de caráter não inflamatório. É
uma dor articular assimétrica e itinerante, que se manifesta preferentemente
nos membros superiores e inferiores de um só lado do corpo e migra de uma
articulação para outra. Geralmente, é uma dor sem calor nem rubor (vermelhidão)
nem edema (inchaço), os três sinais da inflamação. Há casos, porém, em que
esses três sintomas se fazem presentes, assim como podem ocorrer artrite e
excepcionalmente inflamação no primeiro surto de 90% das pacientes.
Preferentemente, as articulações
dos membros superiores. A doença acomete punho, cotovelo, ombro e dedos das
mãos, como se fosse um quadro de artrite reumatóide. Portanto, a artralgia (dor
nas articulações) é um sintoma do lúpus que leva essas pacientes a procurar o
reumatologista. Se não apresentarem dor articular, o diagnóstico clínico fica
em suspenso.
Não há rigidez matutina como na
artrite reumatoide. É uma dor migratória não muito intensa. Isso, muitas vezes,
retarda o diagnóstico, porque a paciente entra em remissão e não procura o
médico.
O sexto critério, e um dos mais
importantes, é a lesão renal. Paciente com lesão renal acompanhada de
hipertensão no primeiro surto tem prognóstico mais reservado. A hipertensão
arterial denota que surgiu um processo inflamatório nas membranas das
estruturas envolvidas no sistema de filtração do sangue que atravessa os rins e
a paciente é acometida por glomerulonefrite.
Isso quer dizer que o rim começa
a filtrar mal e deixa passar pelo poro renal substâncias que deveria reter. Se
esse distúrbio não for tratado convenientemente, a paciente evolui para
insuficiência renal rapidamente progressiva. Na verdade, é o rim que dita o
prognóstico em 90% dos casos, que será pior ainda se for acompanhado do sétimo
critério: a lesão cerebral. Seu primeiro sinal é uma convulsão, um ataque
epilético comum que pode ser confundido como característico de doença
exclusivamente convulsiva e relegar o diagnóstico e tratamento do lúpus para
segundo plano.
A lesão cerebral mais freqüente
revelada pelo exame anatomopatológico é a tromboembolia, ou seja, a deposição
de coágulos no cérebro sob a forma de trombos locais ou de um êmbolo originário
de outra região do corpo que entope o vaso cerebral. Como conseqüência, o
tecido que depende dessa irrigação entra em anóxia e morre por falta de
oxigênio. Além disso, quadros neurológicos graves, como hemiplegia (paralisia
de um lado do corpo), plegia (paralisia parcial de uma parte do corpo) e quadriplegia
(paralisia dos membros superiores e inferiores) parece estarem ocorrendo com
maior freqüência nos dias de hoje em virtude do aumento da sobrevida das
pacientes.
O comprometimento cerebral, em
geral, não acontece no início da doença. No entanto, se estiver ligado à lesão
renal, as dificuldades terapêuticas se agravam bastante.
No território do sangue, o lúpus
estabelece as chamadas penias. Em 20% dos casos, a anemia hemolítica coincide
com a ruptura dos vasos sanguíneos e a fragilidade dos glóbulos vermelhos,
levando à anemia hemolítica autoimune, uma manifestação da síndrome pré-lúpica.
A paciente pode ir ao consultório do hematologista com esse problema e logo em
seguida ou alguns anos depois manifestar o quadro clínico completo do lúpus
eritematoso.
Outra manifestação de penia mais
incidente é a leucopenia, ou seja, a diminuição de glóbulos brancos, dos
leucócitos. Em 40% dos casos, a leucopenia é traduzida pela produção de
anticorpos principalmente dirigidos contra os neutrófilos, um tipo específico
de glóbulos brancos que hoje faz parte do diagnóstico laboratorial do lúpus.
Outra possibilidade é a
ocorrência da plaquetopenia, ou púrpura trombocitopênica idiopática, uma lesão
provocada por anticorpos contra as plaquetas que não tem etiologia definida e
que pode preceder, em alguns anos, a instalação do lúpus.
Essas penias são importantes e,
muitas vezes, levam a paciente lúpica à esplenectomia, ou seja, à retirada do
baço, porque os clínicos já sabiam de longa data que sem ele melhora a produção
de glóbulos vermelhos. O baço funcionaria como uma esponja que reteria os
anticorpos contra substâncias do sangue, e isso acentuaria a diminuição dos
glóbulos vermelhos, brancos e das plaquetas. Retirando-se o baço, esses
elementos seriam redistribuídos na circulação.
Acontece que pacientes lúpicas
infectam-se com muita facilidade. A experiência nas enfermarias mostra que a
retirada do baço em pacientes que sofreram acidentes de automóvel ou em
crianças com traumatismos abdominais coincide com grande número de infecções,
principalmente por salmonelas, bactéria que antigamente causava o tifo. Por
isso, a retirada do baço numa paciente lúpica deve ser bem analisada.
GRAVIDEZ NAS PACIENTES LÚPICAS E OUTROS CRITÉRIOS
É o critério imunológico.
Pacientes lúpicas apresentam uma reação falsamente positiva para sífilis e
manifestam a síndrome anticoagulante lúpica que se caracteriza por trombose,
embolias e abortos de repetição.
Há um conceito difundido
inclusive entre alguns médicos de que pacientes lúpicas não devem, não podem e
não engravidam em virtude de um problema imunológico. O argumento é que algumas
dessas mulheres produzem anticorpos contra um constituinte especial chamado
fosfolípedes, ou seja, substâncias com o radical fósforo do tipo gorduroso
situadas na circulação. Esses anticorpos são responsáveis pela incidência de
abortos recorrentes, aliás, outro sinal de pré-lúpus.
Além de abortos de repetição,
essas mulheres formam coágulos em várias partes do corpo. Formam trombos no
cérebro e formam êmbolos. Paciente lúpica que não tenha esse componente talvez
possa ter uma gravidez normal. No entanto, nas portadoras de lesão renal,
aumenta muito a possibilidade de abortos ou de dar origem a um feto com pouca
chance de sobrevivência. Na verdade, algumas não têm dificuldade para
engravidar, mas a gravidez pode ser tempestuosa e difícil e exige segmento
pré-natal feito por especialista.
A incidência de pericardites
(inflamação do pericárdio, membrana que envolve externamente o coração) e de pleurites
(inflamação da pleura, membrana que recobre o pulmão) também podem ocorrer em
pacientes com lúpus. Em 70% dos casos, a pericardite é subclínica e
diagnosticada apenas nas autópsias. Esse é o décimo critério; o décimo-
primeiro é o fator antinúcleo.
EXAMES LABORATORIAIS
O teste básico de laboratório é a
pesquisa do fator antilúpus. O patologista vai avaliar o caso através de
métodos de união antígeno-anticorpo com corante fluorescente. No exame de
sangue comum, por meio dessa técnica, ele observa como cora o núcleo das
células das pacientes lúpicas. Às vezes, cora difusamente; às vezes, em
pontilhados pequenos e, às vezes, numa reação em anel. A resposta difusa indica
lúpus benigno com lesão de pele e de articulações, mas sem comprometimento dos
rins e do cérebro. Já, o achado em anel correlaciona-se com lesão renal e forte
complexo autoimune circulante. Portanto, esse simples exame de sangue não
invasivo dá ao clínico uma idéia do diagnóstico e do prognóstico. Se o fator
antilúpus aparecer em alta concentração numa jovem, com quase toda a certeza,
num futuro próximo, ela irá encaixar-se em todos os critérios de diagnóstico do
lúpus.
EVOLUÇÃO DA DOENÇA
Quanto mais jovem for a mulher,
pior será o diagnóstico. Lúpus dificilmente aparece em meninas que ainda não
menstruaram. Em geral, o acometimento coincide com a época da menstruação e
atinge mulheres na faixa entre 15 e 30 anos. Se não há lesão renal e cerebral
no primeiro surto, trata-se de uma forma benigna de lúpus caracterizada por
lesões de pele, asa de borboleta, dor nas juntas, sintomas facilmente
controláveis com medicação. É também provável que a paciente não apresente os
problemas correlacionados com o passar da idade e morra de outra causa que não
o lúpus.
Se no primeiro surto, porém, ela
manifestar lesão renal ou cerebral ou, o pior de tudo, as duas ao mesmo tempo,
é sinal de mau prognóstico. Além disso, pesam fatores puramente imunológicos,
por exemplo, a queda de algumas proteínas do sangue como complemento e o aparecimento
de infecções. A evolução das pacientes no Hospital das Clínicas indica que o
aparecimento de infecções é fator decisivo na evolução e prognóstico da doença.
Nos Estados Unidos, estatísticas
mostram que a mulher negra tem evolução pior do que a branca. O que vimos no
Hospital das Clínicas, entretanto, é que aqui há uma equivalência da doença
entre mulheres brancas e negras.
TRATAMENTO
Temos recursos melhores,
inclusive em relação à própria cortisona. Os corticóides modernos não são
dotados de efeitos colaterais como aumento de pressão e grande retenção de sal
e água. Outros podem ser injetados por via endovenosa. É o chamado pulso
terapêutico que consiste em hospitalizar a paciente e infundir de uma só vez,
numa única aplicação, grande quantidade de corticóide.
Com segmento ambulatorial bem
feito, tem condições de levar vida normal. Lúpus é uma doença grave,
especialmente se houver lesão renal e lesão cerebral, mas hoje podemos contar
com um contingente terapêutico importante e com antibióticos mais modernos que
protegem contra infecções e garantem sobrevida maior para essas pacientes.
ORIENTAÇÕES ÀS PACIENTES
Ela deve proteger-se da radiação
solar e usar fotoprotetor mesmo na cidade, porque não é só na praia e na
piscina que o sol é intenso. Deve procurar engravidar com parcimônia e sob
grande supervisão. Deve tomar cuidado com a administração de pílulas
anticoncepcionais, pois o aumento nos níveis de estrógeno pode desencadear novo
surto da doença.
É importante, também, tomar
cuidado para não contrair infecções. Evitar grandes conglomerados ou agrupamentos
de pessoas e o contato com portadores de doenças infecciosas, que possam ser
transmitidas.
Além disso, é preciso estar
sempre atento ao psiquismo da paciente lúpica, que se altera muito com a
doença. Às vezes, a primeira manifestação é um surto psicótico ou de ansiedade.
Por isso, o equilíbrio emocional é meta importante na vida dessas mulheres.